Publicada em 23/10/2017
Longe de ser um privilégio injustificado concedido a sociedades empresárias, a limitação da responsabilidade dos sócios é importantíssimo instrumento de estímulo ao investimento produtivo. Com efeito, a separação patrimonial perfeita dela decorrente faz com que apenas o patrimônio da sociedade personificada – e não mais os patrimônios pessoais dos sócios – respondam ordinariamente pelas dívidas da sociedade.
Por meio da responsabilidade limitada, assegura-se, portanto, a socialização parcial do risco empresarial, na medida em que, diante da insuficiência patrimonial da sociedade, serão os credores – e não mais os sócios de responsabilidade limitada – que suportarão os prejuízos. Parte-se da premissa de que, sendo do interesse de todos o fomento ao investimento produtivo, é justo e razoável que a comunidade como um todo possa arcar com parte do risco empresarial[1], garantindo-se aspectos que são fundamentais para a atividade empresarial, tais como segurança jurídica, previsibilidade e calculabilidade do risco.
Entretanto, são também muitas as possibilidades de que a separação patrimonial perfeita entre a sociedade e os seus sócios possa ser utilizada de forma abusiva, transformando um instrumento de socialização parcial do risco empresarial em um instrumento de transferência total do risco empresarial para os credores sociais.
Tal problema é especialmente agravado em países que, como o Brasil, possibilitam a utilização do modelo da sociedade limitada por pequenos empreendimentos, de forte caráter pessoal ou familiar – em relação aos quais é difícil haver um interesse social distinto do interesse pessoal e concreto dos sócios – e ainda sem qualquer cuidado em relação à formação do capital social, valor que corresponde à contribuição dos sócios para o empreendimento e, nesse sentido, delimita a medida do risco que estão dispostos a correr.
De fato, é prática recorrente no direito societário brasileiro a existência de valores de capital social manifestamente ínfimos ou incondizentes com o risco a ser assumido, de forma que, diante das situações de insuficiência patrimonial, os sócios ficarão na posição confortável de se furtarem da responsabilidade pelo empreendimento sem que nunca tenham efetivamente assumido uma parte razoável do risco. Daí os problemas de subcapitalização[2], tendo em vista que, diante de valores ínfimos, se subverte por completo a função do capital social.
Ora, por mais que se saiba que o capital social não se confunde com o patrimônio social – este, sim, a verdadeira garantia dos credores –, é fato que a insuficiência patrimonial é muitas vezes fruto do valor irrisório do capital social, situação na qual os sócios não assumem minimamente o risco do negócio, transferindo-o exclusivamente para os credores da sociedade.
O problema aumenta quando se percebe que a limitação da responsabilidade tem consequências gravosas sobretudo para os pequenos credores e os credores involuntários, vistos estes últimos como aqueles que nunca negociaram propriamente com a sociedade, mas são dela credores em virtude de atos ilícitos por ela praticados dos quais lhes resultaram danos[3].
Por outro lado, sabe-se que os grandes credores, na prática, acabam sendo protegidos por uma responsabilidade “ilimitada”, na medida em que têm poder de barganha para se cercarem de garantias outras que não apenas o patrimônio da sociedade (inclusive pessoais e reais por parte dos sócios) ou pelo menos para considerar o risco assumido para efeitos de obtenção de maiores vantagens nas negociações.
Não é sem razão que o pressuposto da análise econômica do direito de que a responsabilidade limitada é um fator de redução de custos de transação parte da premissa de que aqueles que negociam com uma sociedade de responsabilidade limitada têm condições de exigir vantagens adicionais como contrapartida ao maior risco que passam a correr. Não é preciso grande aprofundamento para que se perceba que tal raciocínio apenas se aplica a credores com poder de barganha, o que obviamente afasta os pequenos credores e os chamados credores involuntários.
O cenário descrito mostra que estamos diante de um problema verdadeiramente estrutural do direito societário brasileiro, que possibilita muitas injustiças e distorções. E, para resolver o problema, a única solução que tem sido utilizada é a desconsideração da personalidade jurídica.
Ocorre que, inicialmente confinada às hipóteses de abuso da personalidade jurídica, tal como prevê o artigo 50 do Código Civil, a desconsideração passou a ser gradativamente utilizada, em diversas hipóteses, apenas diante da insuficiência patrimonial, sendo dispensável o abuso.
De fato, a chamada “teoria menor”[4] é hoje a regra em muitas searas, tais como Direito do Consumidor, Direito do Trabalho e Direito Ambiental, dentre outras. Contudo, tal teoria, na prática, importa a negação da separação patrimonial perfeita. Por mais que se esteja diante de pequenos credores ou credores involuntários, a aplicação linear da teoria menor tem efeitos perversos, principalmente em casos em que os sócios se utilizaram adequadamente da responsabilidade limitada e assumiram a sua parte do risco empresarial.
Da mesma forma, pode haver muitas distorções quando a chamada teoria maior, que requer a comprovação do abuso, é utilizada de forma indiscriminada e sem a comprovação do desvio de finalidade que deve justificar a responsabilização dos sócios e administradores.
A situação torna-se ainda mais grave quando se percebe inexistir, no direito brasileiro, uma reflexão mais séria a respeito da eficácia subjetiva da desconsideração da personalidade jurídica que, pelo menos nos casos de aplicação da teoria maior, deveria recair preferencialmente sobre os sócios e administradores envolvidos com o desvio de finalidade. Entretanto, o STJ já decidiu que a desconsideração deve abranger indistintamente todos os sócios[5].
A utilização indiscriminada da desconsideração da personalidade jurídica rompe, portanto, não apenas com os pressupostos de segurança e calculabilidade do risco, como até mesmo com os pressupostos de justiça que, na verdade, são aqueles que mais justificam a sua utilização. Por mais que a banalização da desconsideração seja reflexo da banalização da responsabilidade limitada, nem sempre se observa que o remédio, a depender da dosagem, pode se transformar em veneno.
A partir do momento em que a desconsideração passa a ser a regra, a personalidade jurídica perde, nas sociedades com sócios de responsabilidade limitada, o seu efeito de separação patrimonial perfeita, o que desestimula ou impossibilita o investimento e ainda gera altos custos de transação, os quais serão certamente repassados para o preço final de produtos e serviços. Não é sem razão que alguns já advogam o fim da responsabilidade limitada no Brasil[6].
Chegamos, portanto, ao pior dos mundos: um mundo em que a personalidade jurídica e a responsabilidade limitada nem mais garantem segurança nem justiça. E, sem nenhuma iniciativa séria para resolver estruturalmente o problema, continuamos sem esperança de solução.
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[1] FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 18.
[2] Ver, nesse sentido: DINIZ, Gustavo Saad. Subcapitalização societária: financiamento e responsabilidade. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
[3] FRAZÃO, Op. cit., pp. 389-391.
[4] A norma do diploma de 2002 corresponde ao que Fábio Ulhoa Coelho (Fábio Ulhoa Coelho, Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 2, p. 74) denominava por “teoria maior da desconsideração”, aplicável como meio de coibição de fraudes e abusos perpetrados por intermédio da pessoa jurídica, em contraponto à teoria menor, por meio da qual se afastaria a autonomia patrimonial da pessoa jurídica com o simples prejuízo do credor, distinção que o autor abandonou em razão da evolução do tema na jurisprudência.
[5] Trata-se de hipótese de aplicação da teoria maior, na qual se afirmou que “Para os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica, não há fazer distinção entre os sócios da sociedade limitada. Sejam eles gerentes, administradores ou quotistas minoritários, todos serão alcançados pela referida desconsideração” (STJ, 4ª T., REsp 1.250.582/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 12.4.2016, publ. DJe 31.5.2016).
[6] SALAMA, Bruno. O fim da responsabilidade limitada no Brasil: história, direito e economia. São Paulo: Malheiros, 2014.
Ana Frazão –
Advogada. Professora de Direito Civil e Comercial da UnB. Ex-Conselheira do CADE.
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Fonte Oficial: https://jota.info/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/responsabilidade-limitada-18102017.
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