Início > Imprensa > Lendo

CORREIO BRAZILIENSE: 'Democracia exige concorrência', analisa jurista Ana Frazão

Publicada em 27/08/2017

'Democracia exige concorrência', analisa jurista Ana Frazão

Para ela, mercado competitivo é essencial para acabar com a corrupção e assegurar direitos ao consumido

Por Alessandra Alves

Ana Rayssa/Esp. CB/D.A Press
 
Combater a corrupção parece ser um objetivo na agenda de todos os brasileiros nos últimos tempos. Para muitos, a Operação Lava-Jato, que entrou na 45ª fase na semana passada, é o caminho para que o Brasil volte aos trilhos. Mas, para a jurista Ana Frazão, especialista em direito concorrencial, a operação é apenas a ponta do iceberg e está longe de ser uma solução milagrosa. “Se o mercado continuar viciado, o país só vai substituir os corruptos”, alertou. Para a ex-conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autarquia responsável por fiscalizar abusos de empresas, a corrupção estrutural tem relação direta com o descaso com o direito à livre concorrência.
 
 
Entre as inúmeras consequências positivas, a valorização do direito concorrencial resulta em fortalecimento da democracia, desenvolvimento do país e garantia dos direitos do consumidor, explica a advogada. “É um excelente mecanismo para assegurar o funcionamento das instituições democráticas, porque impede que elas sejam corrompidas pelo poder econômico”, defende. No cotidiano das pessoas, as práticas concorrenciais trazem preços mais baixos, variedade de produtos e inovação, ressaltou a especialista, que lançou, na semana passada, o livro Direito da Concorrência — Pressupostos e Perspectivas.
 
Em poucas palavras, Ana Frazão fez um paralelo entre as práticas anticompetitivas, como formação de cartéis, e problemas que insistem em se espalhar pelo país, como a pobreza, a desigualdade e o desemprego. Assegurar a livre concorrência é essencial, tanto para cumprir os anseios básicos da sociedade, quanto os do governo, até mesmo em relação às reformas estruturais, destaca. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Correio:
 
De que forma o direito concorrencial tem a ver com o dia a dia das pessoas?
Eu diria que ele é um pressuposto da democracia, porque impede que as instituições democráticas sejam corrompidas pelo poder econômico. Tanto a formação de cartéis, quanto a corrupção, por exemplo, acabam criando uma barreira de acesso. Quem não paga propina não consegue entrar em determinados mercados. Mas, se paga propina, já tem um custo muito maior, que obviamente será repassado, criando uma bola de neve em que o maior prejudicado é o consumidor. Assegurar condições concorrenciais adequadas é o que possibilita que a população tenha acesso a produtos e serviços mais baratos, com maior qualidade e inovação. No fim das contas, a gente está falando de um bem-estar concreto para as pessoas. E elas têm se interessado mais pelo assunto.
 
Esse aumento do interesse tem a ver com a onda de combate à corrupção, com a Lava-Jato, por exemplo?
Prefiro não atrelar uma coisa a outra, porque ainda acho que o problema da corrupção no Brasil tem sido tratado de uma maneira míope. As pessoas continuam achando que a Lava-Jato é milagrosa. Ela tem inúmeros pontos positivos, mas a gente não vai resolver o problema da corrupção se não mudar as instituições de mercado. Se não, a gente simplesmente sai trocando turmas de corruptos por outras turmas de corruptos. Se o mercado continuar viciado e a cultura continuar sendo a da corrupção, as coisas não vão mudar de um dia para o outro. Por um lado, a Lava-Jato, a meu ver, não ajudou. Tenho medo até que ela tenha atrapalhado, nesse sentido de estimular excessivamente uma ótica de que é uma solução milagrosa, que a gente põe todo mundo na cadeia e resolve, quando, na verdade, a gente sabe que o caminho é muito mais longo, envolve medidas muito mais abrangentes.
 
O que precisa ser feito se o objetivo é realmente acabar com a corrupção?
É fundamental mudarmos as condições concorrenciais dos mercados envolvidos. Há várias formas. Uma que hoje tem se tornado muito falada e eu, particularmente, gosto muito, é o compliance (política de investigações internas e prevenção à fraude). Mas obviamente que isso não é simples, não adianta nada ter um programa de compliance se ele não tem eficácia, se for só para inglês ver. Outro caminho é reforçar a cooperação entre particulares e as autoridades concorrenciais.
 
Pelos acordos de leniência?
Sim. Às vezes, as pessoas não entendem, pensam que a leniência é uma forma de resolver facilmente, como se fosse um benefício para o agente que está requerendo aquilo. Mas, se bem utilizada, ela é fundamental. Por exemplo, a grande dificuldade do cartel é conseguir prova suficiente para dizer que aquilo não é uma mera coincidência de preço, decorreu de um acordo entre concorrentes que queriam determinado tipo de resultado. Aí que entra a política dos acordos de leniência. Gera provas.
 
A crítica costuma ser que as empresas acabam recebendo benefícios, apesar de terem cometido crimes. Muitos controladores continuam à frente da empresa, mesmo depois de confessarem delitos. Isso não é ruim?
O que tem se visto hoje é que, se a gente for cobrar todo o dano que a empresa causou, ela vai quebrar. É por isso que se começa a cogitar de flexibilizar indenização. Mas, se flexibiliza a indenização do controlador, de alguma maneira, ele está se aproveitando do ilícito que ele praticou. A gente acaba beneficiando o controlador que, muitas vezes, foi responsável pelas práticas. Esse é o embate.
 
Como resolver essa situação?
Tirá-lo do comando da empresa me parece a solução, porque protege a empresa como atividade, não ele. A preservação da empresa é importantíssima, mas não se confunde com preservação de controlador. O importante é manter a atividade, os empregos e toda a riqueza que ela gera. Nada impede que se multe compulsoriamente o gestor para assegurar que um novo gestor possa efetivamente implementar as práticas acordadas.
 
Isso tem sido feito?
Não, não tem sido feito, e é um grande problema.
 
Por quê?
Há uma série de razões. Mas o fato de a lei anticorrupção não possibilitar claramente esse tipo de medida gera muitos impasses.
 
Mantê-los no controle é uma opção mais ingênua ou mais preguiçosa?
Talvez as duas coisas. Eu diria que é uma opção conservadora. Acho que essa solução nunca foi apontada porque, no Brasil, muitas vezes, a legislação é excessivamente tolerante com os detentores do poder econômico. É uma discussão que as pessoas preferem evitar.
 
Fala-se muito em reformas. Seria o caso de se fazer uma mudança substantiva também nas leis anticorrupção e que asseguram a livre concorrência?
No âmbito concorrencial, o Cade tem um suporte maior, porque a lei anticoncorrencial diz que ele pode adotar qualquer remédio para restaurar as condições concorrenciais. O que falta, muitas vezes, é estrutura. Já a situação da lei anticorrupção é um pouco mais delicada, é uma legislação que precisa de uma série de reparos.
 
O que poderia ser melhorado?
Acho que uma das questões mais urgentes é a harmonização das competências das diversas entidades envolvidas, principalmente nos acordos de leniência. Esses acordos pressupõem incentivos, e só há incentivos se houver segurança jurídica. Como as partes vão se sentir incentivadas se existem várias autoridades envolvidas? Tem TCU (Tribunal de Contas da União), CGU (Controladoria-Geral da União), AGU (Advocacia-Geral da União) e MP (Ministério Público). Hoje, a empresa faz um acordo com uma e acha que o problema está resolvido, mas vem a outra e fala que não reconhece. Complica-se desnecessariamente.
 
Resolver os problemas concorrenciais é tão importante quanto as outras reformas que o governo tem feito?
Sem dúvida nenhuma. A questão concorrencial é muito sensível. Se não é a mais importante — é até difícil dizer, porque não tem como fazer essa priorização —, certamente é uma das mais.
 
Então, de certa forma, o governo está fechando os olhos tanto para a parte dessa mudanças nas leis, quanto para a parte operacional, ao negar recursos necessários ao Cade?
Acredito que sim. Há situações como ter um conselheiro com um assessor ou dois, como foi o meu caso nos três anos em que fui conselheira. Isso me preocupa, porque o cenário futuro vai exigir grandes investimentos em tecnologia para tudo. Claro que o governo vai dizer que o Brasil está em uma situação horrível, não tem dinheiro para nada. Mas acho que as pessoas ainda não perceberam que a proteção da concorrência é uma questão prioritária.
 
Como o cidadão perceberia os efeitos de uma legislação que funciona?
Quanto mais o mercado valoriza mérito e eficiência, mais os agentes vão se sentir motivados a baixar preços, a investir em qualidade e em inovação. Hoje existe uma discussão muito importante do uso do direito da concorrência para a diminuição da pobreza, porque permite que as camadas mais pobres tenham acesso a produtos. Um mercado pouco competitivo é um estímulo para a corrupção e para a pobreza, porque a tendência é que os preços fiquem mais altos, o que onera exatamente a camada mais pobre, em termos proporcionais. Práticas anticoncorrenciais impedem acesso a mercados, principalmente de pequenos empresários. Quando as empresas têm mais condições de se manter no mercado, certamente há repercussão na geração de empregos.


Confira a entrevista no site do Correio Braziliense

Leia também

Compartilhe

Podcast
Desenvolvido por Rian Design